Antes dela ter morrido em Ciudad Juarez

por Adriana Brunstein

Acabei chutando a porta e não soube dizer o que era sangue, o que era morte, ou se um era parte do outro. Uma mola saía por um pedaço do colchão, parecia a fratura exposta daquele cara de cor esquisita, que mesmo com um facão quase atravessando seu pescoço, não se decidia por uma merda de nacionalidade que eu perguntei por total falta de assunto. Ele tremia e suava e olhava praquele osso e a dor já o levava ao ponto de gargalhar. Pressionei um pouco mais o facão até que ele gritasse qualquer coisa e foi “ay, por la puta madre”. E começou a rezar como quem enrola e solta a língua pra distrair uma criança. Há sempre algo de cômico que prenuncia a morte. Ela costumava falar de anjos e que eles se vestiam de preto e carregavam bastões mágicos. Na verdade ela disse tacos mágicos. Como tacos de baseball?, eu perguntei. Foi assim que eles levaram seu pai enquanto ele dormia no sofá da sala, roncando até os bagos. Sua mãe tinha essa mania de falar bagos quando queria amaldiçoar alguém. Então eles tinham um vizinho seboso até os bagos e uma velha senhora muda até os bagos que chupava laranjas o dia inteiro. Não, não eram como tacos de baseball. Ela ficou tentando buscar uma palavra e eu disse que deixasse pra lá, que é o certo a se fazer com lembranças. Mas a gente não consegue.

Ela e o irmão estavam no quarto, que era separado do resto da pequena casa por uma cortina remendada com pregadores de roupa. Ele era mais velho e bem mais alto que ela e que todo mundo que ela conhecia. Ela o chamava de Gigante e perguntou “o que são bagos, Gigante?”. Ele tapou sua boca e disse que em trinta carneiros a soltaria, mas que ela devia ficar quieta. Os carneiros sempre a acalmavam quando ela sentia medo de alguma coisa. O Gigante a havia ensinado a contá-los e, durante um rápido pôr do sol ao meu lado, ela riu porque certamente desbancaria todos os Club Lambs do Texas ainda antes de perder a conta e deixar a infância pra trás. Eu tinha o meu próprio jeito de lidar com a vida dos outros e esse jeito se chamava silêncio e eu não acho que ninguém espera algo além de silêncio quando fala de todos os medos ou de qualquer outra coisa. Deixei que ela apoiasse a cabeça em meu ombro. A luz entre o dia e a noite é sempre confusa e mais perigosa que o breu. Nossos olhos são ludibriados e não conseguimos distinguir uma pessoa de um abutre ou de uma árvore seca. A não ser que se mexa. Então podemos descartar a árvore.

Não existe muita coisa pra gente concluir por aí, mas outras gritam alto demais e então a gente presta atenção nelas. Como o sangue ao redor de uma pessoa morta. Não há duas formas iguais porque é como a impressão digital de uma vida. Às vezes são flores e em outras cavalos e no caso dela eu só via uma tinta escura que se misturava ao vestido amarelo que ela dizia que dava uma espécie de sorte. Eu quis saber o que era uma espécie de sorte porque pra mim sorte era igual azar e dinheiro, coisas que a gente tem ou não tem e ponto. “Não é assim. É como um sinal que vem e se a gente não percebe ele simplesmente passa. É como o jeito estranho que Deus tem pra mostrar caminhos”. Então ela me contou que sempre que ela usava aquele vestido era o que acontecia. Que nem no dia em que nos trombamos ao dobrarmos uma esquina porque nossos pensamentos caminhavam, distraídos, em outros mundos. Olhando para ela estirada naquele chão de madeira podre e esponjosa eu quis saber de Deus porque ele não havia colocado uma maldita bifurcação em seu caminho, para que ao menos ela percebesse o maldito sinal já que estava usando o maldito vestido e fosse para o outro lado. O lado onde ela não seria brutalmente violentada no quarto oito do Lotus Motel. Mas Deus não disse nada. Como eu, ele também acha que ninguém espera algo além de silêncio. E então eu me lembrei. El Salvador. Foi o que o cara de cor esquisita disse antes de morrer de vez.

Depois dos trinta carneiros, conforme prometido, o Gigante soltou sua boca e ele tinha lágrimas de ódio nos olhos. Ela soube disso porque lhe perguntou se ele estava triste e ele disse que não, que eram lágrimas de ódio. “Ódio de quem? Dos anjos?”. O Gigante disse que ela também deveria cumprir sua parte na promessa e ficar quieta, o que ela prontamente obedeceu e ele lhe beijou a testa. Tomávamos alguma coisa forte demais pro calor que fazia quando ela quis saber se eu já havia odiado alguém. Eu disse que geralmente não sentia nada, que não podia, porque não dava pra seguir vivendo se a gente perde tempo sentindo alguma coisa. Não na vida que eu levava, mas que eu não queria falar sobre ela porque não era bonita nem nada. E que não ia adiantar de nada contar carneiros ou me dizer que podia ser diferente. Eu a havia escolhido ou foi o contrário, mas aceitamos um ao outro sem deixarmos claro o que aconteceria caso um dos dois desistisse. Pra mim era assim que tinha que ser e o tempo que a gente não gasta sentindo a gente usa pra olhar as coisas que têm no mundo. O que jamais seria possível de novo para todos aqueles que me imploraram por suas vidas. Inclusive o Gigante.

O solo de Ciudad Juarez engolia corpos e vomitava cruzes e ninguém mais sabia dizer se houve tempo que não fora assim. O Gigante cresceu jurando vingança, não exatamente pelo pai, mas num lugar como aquele existiam muito poucos motivos pra crescer, então se vingar era o escolhido pela maioria dos moleques. E talvez a gente só cresça pra se vingar da vida, porque a gente não pediu nada disso. E chutaram um velho do bar porque não aguentavam mais ele chorando a morte do filho. Eu esvaziei meu copo numa golada só e fui atrás dele, sem sentir nada além de um impulso besta que dá em que bebe um pouco demais. E jogado ali na sarjeta ele certamente buscava algum amparo, mas eu só o coloquei sentado. E ele me contou que o filho havia sido morto por el hombre toro. O garoto era honesto e nunca havia feito mal a ninguém ou pelo menos era assim que o velho o via e era esse o filho que perdera. E disseram ao velho que o toro era grande demais pra gastar bala no filho dele e chutaram sua barriga. E deixaram o velho vivo para que ele visse morrerem também seus sonhos, um após o outro. Ainda pensei em meter uma bala na sua cabeça antes de sair, mas fazia tempo demais que eu não fazia caridade e acabei perdendo o jeito.

Perguntei a ela sobre el hombre toro porque eu não tinha outra coisa pra perguntar. Ela disse que ele já era mais lenda que homem. Que parecia uma redenção escondida nos olhos de quem falava dele e de quem o esperava. Mesmo que fosse morte de quem levou um tombo e quebrou o pescoço diziam que era o toro. Eu quis saber se ele existia de verdade e ela respondeu que todos os retratos que fizeram dele eram tão diferentes uns dos outros que resolveram colocar chifres porque parecia coisa do diabo isso de ter tantos rostos. Por isso ele virou el hombre toro, e quando a gente dá nome a uma coisa fica mais fácil de se acostumar com ela. “O Gigante dizia que a gente precisa dar um nome pras pessoas pra ter o que escrever na cruz quando ela estiver de pé”. Ele esperou que ela crescesse e então arrumou suas poucas coisas e disse que ia resolver uns assuntos e então voltaria para levá-la daquele lugar. Daquela casa, daquela cidade, daquele mundo remendado até os bagos por pregadores de roupas.

Ela nunca mais o havia visto, mas eu percebi que tinha certeza que ele viria. Do mesmo jeito que achava que havia trombado comigo por um sinal ou uma espécie de sorte. Eu nunca quis saber o motivo de me contratarem pra apagar alguém, nem mesmo porque me imploravam pra continuar nesse inferno. Eu quis dizer a ela que o Gigante não voltaria, e que no meio de todo aquele sangue que ele cuspia pelo corpo todo ele me entregou uma carta endereçada a ela. Mas eu não disse nada. Eu falei pra ela ir pro Lotus e me esperar e entreguei a chave do quarto oito. Eu só ia pegar o resto da minha grana pra entregar pra ela, pra que ela arrumasse uma vida melhor. E para que ela soubesse que el hombre toro tinha uma cara e era a minha, e que ninguém percebe o mal porque ele fica sempre perto demais. Então eu abri a carta e li para ela. Estava escrito assim: “Bagos são bolas, cariño. São apenas malditas bolas”

Adriana Brunstein é PhD em física, escritora, dramaturga e roteirista, com trabalhos em várias vertentes e meios da comunicação. Ganhou o prêmio HQMIX 2008 de melhor roteirista nacional pelo roteiro da Graphic Novel Prontuário 666 – Os Anos de Cárcere de Zé do Caixão e foi contemplada no 13º Cultura Inglesa Festival pelo roteiro do curta-metragem Olhos de Fuligem. Publicou o romance Estado Fundamental pela Panelinha Books, com prefácio de Lourenço Mutarelli. Vive em São Paulo

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